Lisboa

  • Isabel de Fátima Resende. A varanda da sua revolução


    Quando atravessei a revolução do 25 de Abril de 1974, eu tinha 12 anos. Era uma adolescente revoltada que tinha toda a esperança nessa revolução para que me trouxesse a liberdade que tanto esperava. Era uma menina um tanto pouco baixa, magra, mas com um olhar gélido e, por isso, na minha cabeça, era capaz de fazer aquela revolução sozinha.

    Mas, no dia certo, quando ouvi o alarido que surgiu à frente da minha varanda, corri para ela com esperança que fosse uma revolução que acabasse com todas as injustiças que até à data tinha, e tínhamos, vivido. E, para meu espanto, era a grande revolução do 25 de Abril, com cravos nas espingardas dos soldados.

    Não tive receio nem medo de continuar na varanda, segundos seguidos, a espera de ver o que iria acontecer, apesar da insistência da minha querida e já falecida mãe que teimava em chamar-me para dentro e gritava dizendo “sai da varanda. Não tens idade para ver o que vai acontecer”, porque, na realidade nem ela sabia o que ia acontecer. Mas eu não saí. Nem sairia. Estava absolutamente fascinada a ver e para saber o que aquilo ia dar. E hoje, relato, o que vi com os meus próprios olhos.

    O 25 de Abril devolveu-me o sorriso que era já transparente depois de 12 anos de vida insatisfeita e prisioneira do tão destemido Salazar que nos obrigava a ler o que achava que iriamos implementar num estudo contínuo que tínhamos na escola.

    Na rua via imensos soldados carregados com as suas espingardas com cravos que uma senhora desejou espalhar por cada um. Estava uma vista absolutamente maravilhosa, e eu, sem saber que aquilo se iria passar estava deslumbrada com tanto medo e tanta paz futura que sentia naquela rua.

    A verdade é que não ouvi o primeiro sinal secreto do movimento das forças armadas, mas o segundo … ai o segundo aviso eu ouvi. Começou com a canção Grândola Vila Morena, e tantos anos depois não me lembro da hora certa.

    Hoje, a minha filha mais nova ajuda-me a escrever nestas modernices para que saibam a memória que tenho da revolução e o orgulho enorme com que assisti aquela harmonia toda.

     

    INFORMAÇÃO ADICIONAL

    Autor - Relator: Isabel de Fátima Resende e Cláudia Fulgêncio; Filipe Guimarães da Silva
    Testemunha - Contador: Isabel de Fátima Resende
    Ocupação à época: Estudante

    Região: Lisboa

    Data do início da história: 25 de Abril de 1974
    Data do fim da história: 25 de Abril de 1974


    DIREITOS E DIVULGAÇÃO

    Entidade detentora de direitos: Instituto de Historia Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova Lisboa – Portugal
    Tipo de direitos: Todos os direitos reservados

  • Maria Jorgete Teixeira – 25 de Abril. Era para ser um dia como os outros


    O 25º dia do mês de Abril de 1974

    Era para ser um dia como os outros. Mas tinha sido gerado nessa noite  e noutras antes dela, entre a revolta e o medo, entre o amor à liberdade e a coragem. E uma madrugada clara, prenhe de braços, vozes e passos,  tinha nascido sem eu dar conta. Apanhou-me de surpresa naquela sala de um 6º andar de uma rua do Lumiar, em Lisboa.

    Era para ser um dia igual aos demais, com as suas rotinas, as suas dores, as suas angústias, as suas asas e o seu medo. O medo, definido na gramática como substantivo comum, masculino do singular era, naqueles tempos, um nome concreto, sem gênero, plural e comum a todos. Físico como uma pedra nos rins. O medo que não impedia que pela calada da noite pichássemos as paredes com palavras de ordem contra a guerra colonial, ou desafiássemos os “gorilas” na Faculdade de Direito de Lisboa onde andava.

    Porém esse dia 25, do mês de Abril, não iria ser um dia normal, embora só tivesse dado conta disso quando saí para levar a Inês, a minha filha mais velha, à creche, situada um pouco mais à frente do quartel da EPAM, na Alameda das Linhas de Torres.

    A creche estava fechada e não havia ninguém para dar explicações. No super mercado da rua, notei um movimento pouco habitual para aquela hora, as pessoas entravam e saíam mudas, carregadas de sacos e de olhos baixos.

    A rádio que liguei, mal cheguei a casa, transmitia música clássica e a ausência da voz do locutor era marcadamente estranha, até que na TV o Fialho Gouveia lê o comunicado do Movimento das Forças Armadas. O coração entrou em alvoroço e já não mais se acomodou…

    Depois chegou-nos o som da marcha militar e o comunicado repetido ao longo do dia mandando-nos ficar em casa.

    Fiquei, de início. Estava grávida de 7 meses e tinha uma outra menina que iria completar um ano três dias depois. Arroubos e inconsciências da juventude aliados a um ventre fértil com que a natureza me dotou… 

    Colada às notícias, comecei a fazer um saco de ganga, daqueles que a moda hippie ditava, inteiramente feito à mão, com umas aplicações de pano formando uma flor e debruado a vermelho, num ponto cruzado. Não me lembro de muito naquele dia, mas não me esqueço do saco a tiracolo que usei até se rasgar. Ainda o guardei durante um tempo até que se perdeu, já nem sei como, numa das andanças da vida.

    Pouco sabíamos dos passos e dos segredos que aquela noite e outras antes dela tinham acolhido.

    Cautelosa, esperei em casa presa de esperança e de esperanças… Os homens tinham saído. A assuntar o sucedido. Pensavam que não era assim em casa de revolucionários? Desenganem-se, em situações de escolha eram sempre eles que saiam… 

    Fui até à baixa, passei pelo Rossio, a abarrotar de gente, vozes, punhos, cravos, carros de combate e um sol esplendoroso nos olhos de todos.

    Subi o Chiado onde ondas de gente em rebuliço se deslocava em correntes de sentido contrário, enquanto se ouviam tiros para os lados da António Maria Cardoso. Só ao fim do dia soube que tinham sido mortas pessoas…

    Incomodava-me um pouco a barriga túrgida, mas não conseguia ficar longe das ruas que ferviam de risos e de esperança. Tínhamos passado tanto tempo na escuridão que a luz extrema nos incomodava os olhos e não sabíamos o que fazer às palavras e aos braços. Éramos como pássaros a sair do ninho, entontecidos ensaiávamos voos sempre com medo de que nos estatelássemos no chão, ou que garras mortais nos aprisionassem. Nenhum dia teve ainda uma luz assim tão clara…    

     

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    Autor - Relator: Maria Jorgete Teixeira; Filipe Guimarães da Silva
    Testemunha - Contador: Maria Jorgete Teixeira
    Ocupação à época:

    Região: Lisboa

    Data do início da história: 25 de Abril de 1974
    Data do fim da história: 25 de Abril de 1974


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    Entidade detentora de direitos: Instituto de Historia Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova Lisboa – Portugal
    Tipo de direitos: Todos os direitos reservados

  • Rajadas vindas do edifício da PIDE. História de Maria Clara Costa


    Faz hoje 40 anos que o meu telefone tocou às 7 da manhã. Pensei em tudo, menos que era para me avisar para não sair de casa porque havia uma revolução. Comuniquei de imediato ao meu Director, cidadão brasileiro, para que ele também não saísse. A seguir, foi um não acabar de chamadas telefónicas, ao mesmo tempo que ia sabendo das notícias pela rádio, entre marchas militares e Grândola Vila Morena. O Zé quis ver para crer, mas eu fiquei em casa naquele que, sem eu saber, era o meu primeiro dia de liberdade.

    No dia seguinte, apresentámo-nos ao serviço mas ninguém tinha cabeça para fazer fosse o que fosse. Os escritórios ficavam no Marquês de Pombal ao lado do edifício da Força Aérea. Muito embora os nossos corações estivessem a transbordar de esperança, não era tranquilizador ver pessoal armado em cima do telhado. De tarde, fomos todos dispensados do trabalho e eu mais a Eduarda e a Maria dos Anjos resolvemos ir comprar sandes para dar aos soldados que lutavam pelos nossos interesses desde o dia anterior.

    Abastecemo-nos na famosa pastelaria Ferrari, na Rua Nova do Almada, que viria a ser destruída pelo incêndio de 1988, e seguimos para a Calçada de S. Francisco, Rua Vítor Cordon onde, no cimo, avistávamos as traseiras do edifício da PIDE. Distribuímos o almoço e ficámos ali, entre soldados e uma montanha de gente, a ouvir os mais diversos comentários. Falávamos pouco, porque a liberdade ainda não nos corria nas veias. E, subitamente, o ambiente de festa mudou. Do edifício da PIDE começaram a sair rajadas de metralhadora, que caíam não sei onde, emitindo um ruído semelhante à queda de granizo.

    Gerou-se o pânico e toda a gente correu para o abrigo mais próximo. Eu, na corrida para um bar, perdi o casaco que tinha pelos ombros e voltei atrás. Fiquei só e, no regresso ao bar, encolhi as costas para não ser atingida por aquelas coisas que eu não via, só ouvia. O bar estava cheio, o silêncio era total até ao despertar da minha consciência. Nessa época, estar enfiada num bar era pecado mortal, eu queria sair dali, queria ir para casa onde o meu marido me esperava. A Maria dos Anjos chorava, dizendo que não arriscava a vida e muito menos o casamento que se iria realizar na semana a seguir. A Eduarda não tinha compromissos, mantinha-se calada.

    Até que, na minha santa inocência, tive uma brilhante ideia: “vamos sair de costas para os disparos, as duas vão à minha frente e eu atrás faço de escudo”. E foi assim que saímos do esconderijo e subimos a calçada. Nessa altura, não adivinhava que o dia mais feliz da minha vida iria chegar no primeiro dia do mês a seguir. Foi uma explosão de alegria colectiva, a liberdade entrou-me na alma, rebentou a cápsula que me oprimia e saiu de dentro de mim outra pessoa, mais confiante, mais comunicativa. Os medos dos vizinhos do meu prédio e da minha rua, até da família e amigos, que poderiam ser informadores da PIDE, e alguns eram, desapareceram com a imagem dos cravos espetados nos canos das espingardas.

    Passados 40 anos, a minha amiga Eduarda paira algures no universo, a Maria dos Anjos casou e nunca mais soube dela e eu cá vou caminhando, embalada pelo vento da Amadora, na esperança de que, num 25 de Abril ou num outro dia qualquer, aqueles cravos vermelhos renasçam das cinzas.

     

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    Autor - Relator: Maria Clara Andrade Soares Pedro da Costa; Pedro Serra
    Testemunha - Contador: Maria Clara Andrade Soares Pedro da Costa
    Ocupação à época:

    Região: Lisboa

    Data do início da história: 25 de Abril de 1974
    Data do fim da história: 1 de Maio de 1974


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    Entidade detentora de direitos: Instituto de Historia Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova Lisboa – Portugal
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  • Um dia de nervos. Por Luís Manuel Dias


    Hoje passam quarenta anos do 11 de Março. Não resisti a relatar o episódio que então vivi na primeira pessoa.

    Estava a almoçar no refeitório do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), de frente para a janela grande, quando eu e todos os presentes presenciámos o raid de aviões e o posterior ribombar de tiros.

    Foi também por essa altura que o nosso colega Rui G. Henriques entrou completamente espavorido, dizendo que estávamos a ser atacados e que, logo que pudéssemos após o almoço, teríamos uma Reunião Geral de Trabalhadores (RGT), que aconteceu por volta das 2 da tarde e onde foi decidido partirmos todos em manifestação e em defesa da democracia. Não sem antes ter sido decidido que a carpintaria serraria todas as tábuas que pudesse, para fazer varapaus, de forma a termos alguma defesa no caso de tudo dar para o torto.

    Lá partimos em manifestação pela Avenida do Brasil abaixo, com slogans como "viva o 25 de Abril", entre outros. O objectivo traçado em RGT era o de defender as instalações da RTP na Alameda das Linhas de Torres. Passámos pelo quartel do Campo Grande, hoje Universidade Lusófona. Eu vinha atrás da manifestação com o engenheiro Silva Alves, porque por esse tempo ambos pertencíamos à comissão executiva incumbida da extinção da PIDE/DGS no LNEC e estávamos na posse de informação sobre pessoas que também iam na manifestação. O Eng. Silva Alves dizia-me: “vamos atrás, porque se isto der para o torto não sabemos para que lado eles malham”.

    Por alturas do referido quartel todos se calaram, pois só víamos as ponteiras das G3 apontadas para fora das janelas, particularmente as mais altas que eram as que vislumbrávamos, e não sabíamos de que lado as tropas estavam. Houve um silêncio sepulcral durante uns segundos que pareceram horas, até que um militar do lado de dentro gritou “viva o 25 de Abril” e então aí foi a explosão do nosso lado e lá seguimos a nossa epopeia direitos à Alameda. Já perto da Alameda, fomos abordados por militares que estavam a defender aquele que era para nós o lado certo da revolução. Foi aqui que desmobilizámos. Seriam talvez 4 da tarde e alguns foram para a porta da RTP ver o que se passava, enquanto eu e o Rui G. Henriques decidimos ir (a pé) até ao RALIS saber como estavam as coisas.

    Aqui iniciou-se o episódio mais rocambolesco, não sei se deste período, se de toda a minha vida. Encontrei o meu amigo e colega de escola Paiva a cumprir serviço militar no RALIS. Enquanto falávamos, ele estava dentro do quartel, sem poder sair, e eu fora. Lá trocámos “conversa”: ele falava do que se passava dentro e eu do que vira fora do RALIS. Depois disto, ele pediu-me que quando fosse para Almada passasse por casa da mãe e lhe dissesse que tudo estava bem com ele, pois telefones não havia e telemóveis ainda não tinham sido inventados.

    Ora, por mim tudo bem. Prestaria esse serviço a um amigo de bom grado e até inchado por participar desta forma numa acção de mérito quase militar. Mas o que aconteceu depois quase me deixou traumatizado. Chegado perto da casa dele, junto ao largo do chafariz da Rua Capitão Leitão, dei de caras com uma multidão em polvorosa, particularmente quando perguntei se era ali que morava o Paiva e disse que queria transmitir uma mensagem á mãe dele. Tentei em vão dizer à mãe do Paiva que tinha estado com ele e tudo estava bem. O que é facto é que a senhora pensou que eu era militar e vinha dar uma má noticia e não a consegui convencer da veracidade do que lhe contava. Os vizinhos cercaram-me, pedindo-me que lhes contasse a verdade, e por mais que insistisse não consegui convencê-los. Depois de muita insistência, tive que abandonar o local, com a convicção de que só quando o Paiva voltasse, um ou dois dias depois, os meus argumentos triunfariam.
    Assim foi o que aconteceu.    

     

    INFORMAÇÃO ADICIONAL

    Autor - Relator: Luís Manuel Dias; Pedro Serra
    Testemunha - Contador: Luís Manuel Dias
    Ocupação à época: Funcionário do LNEC

    Região: Lisboa
    Locais: LNEC; Avenida Brasil; Campo Grande; Almada; RALIS

    Data do início da história: 11 de Março de 1975
    Data do fim da história: 11 de Março de 1975


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    Entidade detentora de direitos: Instituto de Historia Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova Lisboa – Portugal
    Tipo de direitos: Todos os direitos reservados

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