Na noite de 27 de Setembro de 1975 a embaixada de Espanha em Lisboa foi alvo de um assalto na sequência de uma manifestação convocada por forças de extrema-esquerda como protesto pela execução de cinco nacionalistas bascos pelo regime franquista. Este assalto foi precedido pelo ataque e destruição das dependências dos serviços de Chancelaria e do Consulado, na Rua do Salitre. Os manifestantes destruíram aqui tudo o que se encontrava no interior e não podia ser lançado pelas janelas, para ser queimado em fogueiras na via pública. Depois, os manifestantes dirigiram-se à Praça de Espanha, onde começaram por partir os vidros da embaixada, que foi depois assaltada, com o incêndio do recheio.
Num momento em que o novo regime português envidava esforços para a credibilização internacional do país, estes incidentes revelaram-se potencialmente dramáticos, gerando, mais uma vez, o receio de uma eventual intervenção militar externa.
Nunca foram apurados os responsáveis por este ataque, mas parece claro que um ato tão grave não foi fruto da ação intempestiva de uma multidão fora de controlo. As ações foram coordenadas com o ataque às representações diplomáticas de Espanha no Porto e Évora e tinham duas finalidades óbvias, a primeira, descredibilizar o novo regime político português, apresentando-o simultaneamente como radical e incapaz de garantir o mínimo de segurança, a segunda, justificar uma intervenção estrangeira que invertesse o curso do processo político iniciado em 25 de Abril de 1974.
O assalto à embaixada de Espanha deve ser analisado à luz da situação que se vivia na época na Península Ibérica e na Europa. A Espanha, ainda sob o regime de Franco, viu com grande preocupação o fim da ditadura portuguesa. Desde os primeiros momentos manifestou receio de que os ventos da democratização do país vizinho alastrassem para lá da fronteira. Esses receios acentuaram-se a partir da resignação do general Spínola da Presidência da República em Outubro de 1974 e foram sempre crescendo à medida que o processo político português se orientava para a esquerda e para o socialismo.
Para o regime franquista, a partir do insucesso da tentativa do golpe de 11 de Março de 1975, chefiado pelo general Spínola, o governo português passou a ser considerado como uma ameaça e Espanha concedeu exílio e apoio aos vários grupos de portugueses que se propunham derrubá-lo pela força e que se reuniram politicamente no Movimento Democrático de Libertação de Portugal – MDLP – e no seu braço armado, o Exército de Libertação de Portugal – ELP. Arias Navarro, o chefe de governo espanhol, terá pedido o apoio dos Estados Unidos para uma intervenção da Espanha em Portugal.
Documentos do Departamento de Estado norte-americano, recentemente desclassificados, e publicados pelo jornal El País, revelam que Carlos Arias Navarro, último chefe do Governo de Franco, declarou aos norte-americanos que a Espanha estava disponível para uma intervenção armada em Portugal, em 1975, para travar o comunismo. Segundo esses documentos, Arias Navarro manifestou as suas preocupações ao então vice-secretário de Estado norte-americano, Robert Ingersoll, durante um encontro em Jerusalém em Março de 1975. Ingersoll comunicou ao secretário de Estado Henry Kissinger as palavras do chefe do governo espanhol: «Portugal é uma séria ameaça para Espanha, não só pelo desenvolvimento que está a ter a situação, como pelo apoio exterior que podia obter e que seria hostil a Espanha.»
Também o antigo embaixador português em Madrid, Fernando Reino, em declarações aos jornalistas em Madrid, em 1994, embora contando uma versão um pouco diferente, dizendo que foram os EUA que sugeriram a Espanha a hipótese de invadir Portugal durante a crise provocada pelo assalto à embaixada espanhola em 1975, confirmou a possibilidade de intervenção estrangeira em Portugal, tendo a Espanha como fulcro. Segundo o antigo embaixador, «nessa altura houve um conselho de ministros em Espanha em que se discutiu o assunto e havia duas alas, uma que defendia a intervenção e a outra não». Fernando Reino acrescentou ainda que, de acordo com as informações de que dispunha, teria sido o próprio Franco a decidir pela não intervenção em Portugal.
Numa comunicação transmitida pela televisão espanhola em 30 de Setembro de 1975, a propósito das reações internacionais à morte dos cinco militantes antifranquistas, Arias Navarro afirmou que o governo espanhol atuou e atuará «na serena e firme certeza de estar a cumprir as suas obrigações, sem se sentir intimidado pelas dimensões da campanha exterior». Teceu duras críticas ao México pela «inaudita iniciativa» de ter proposto a expulsão da Espanha das Nações Unidas, mas não referiu o caso da embaixada em Lisboa. Quem se referiu a este caso foi o chefe de Estado, Francisco Franco, a 2 de Outubro, num breve discurso proferido na Praça do Oriente, em Madrid, em resposta a uma manifestação de apoio ao seu regime. Franco referiu-se ao assalto em Lisboa procurando retirar a carga dramática e potencialmente perigosa que o envolvia, desvalorizando-o, ao dizer: «Não é a mais importante das agressões de que foram objeto várias representações e estabelecimentos espanhóis na Europa, ainda que tal se apresente na sua aparência. O assalto e destruição da nossa embaixada em Portugal foram realizados num estado de anarquia e de caos em que se debate a nação irmã. Ninguém está mais interessado do que nós em que nela possam ser restabelecidas a ordem e a autoridade».
Por parte das autoridades portuguesas houve o mesmo cuidado em desvalorizar o acontecimento. Na comunicação ao país feita em 29 de Setembro, o almirante Pinheiro de Azevedo, primeiro-ministro e Presidente da República interino, incluiu o assalto às representações diplomáticas espanholas num conjunto de factos preocupantes, mas sem o isolar: «os acontecimentos dos últimos dias, com destaque para a ocupação da Emissora Nacional, para o ataque à embaixada e consulado de Espanha, com destruição pelo fogo dos seus recheios e para a tentativa de aprisionamento do próprio governo ultrapassam todos os limites de tolerância e poem em causa a subsistência, não já de uma autoridade eficaz, mas de toda e qualquer autoridade, senão mesmo da própria nação como estado independente».
O general Costa Gomes também deu um sinal de tranquilidade ao manter a visita à Polónia, iniciada a 28 de Setembro, a que se seguiu a visita à União Soviética.
O bom senso que prevaleceu nos decisores finais dos governos envolvidos evitou que este caso da maior gravidade assumisse as proporções que os seus desconhecidos autores pretendiam, de desestabilizar a Península Ibérica, revertendo a situação em Portugal, evitando a transição da Espanha para um regime democrático e perturbando o clima de desanuviamento Leste-Oeste que se vivia na época e que tivera o seu momento alto nos Acordos de Helsínquia, resultantes da Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa, em Agosto de 1975.
Aniceto Afonso
Carlos Matos Gomes
Maria Inácia Rezola