Nos primeiros dias de Setembro, todas as atenções se centram em Tancos.
O mês de Agosto fora particularmente agitado. Desde logo pela divulgação do Documento dos Nove e pela suspensão dos seus subscritores do Conselho da Revolução. As divisões no seio do MFA acentuam-se com a publicação, a 12 de Agosto, da Autocritica Revolucionária do COPCON onde se faz a apologia do poder popular. As ruas enchem-se de manifestações e acções de protesto. Recém-empossado como primeiro-ministro do V Governo Provisório, Vasco Gonçalves é alvo de crescente contestação, nomeadamente depois do polémico discurso que profere num comício em Almada, a 18 de Agosto, onde anuncia: “Chegou a hora da verdade da Revolução Portuguesa”. Dois dias depois, Otelo Saraiva de Carvalho proíbe Vasco Gonçalves de visitar as unidades militares integradas no COPCON e pede ao general que “descanse, repouse, serene, medite e leia”. O país incendeia-se com a luta política e a escalada de violência contra sedes e casas de trabalho do PCP e partidos de extrema-esquerda, sobretudo no norte e centro do país.
Para os autores do Documento dos Nove, esse era um momento decisivo em que se jogava o seu lugar no aparelho político-militar e os rumos da revolução. Por isso, é evidente o seu empenho na preparação da Assembleia do MFA prevista para dia 5 de Setembro na Escola Prática de Engenharia em Tancos. Por um lado, pretendiam impedir a nomeação de Vasco Gonçalves como Chefe de Estado Maior General das Forças Armadas ou a sua recondução como primeiro-ministro. Paralelamente pretendiam promover uma recomposição das estruturas do MFA que lhes desse vantagem no panorama político-militar. A missão afigurava-se espinhosa, uma vez que o sector gonçalvista detinha ainda importantes posições e revelava-se disposto a resistir às investidas dos designados moderados.
Neste contexto, as reuniões preparatórias da Assembleia, a realizar em cada ramo, revestem-se de particular importância. A reunião da Assembleia do Exército, convocada para 2 de Setembro, foi particularmente tensa obrigando a uma segunda reunião, na manhã de 5 de Setembro. Segundo alguns órgãos de imprensa, das longas horas que durou o encontro “as mais dramáticas” terão sido aquelas em que Vasco Gonçalves esteve presente, dado que a sua intervenção motiva “uma significativa discussão de carácter ideológico entre o ex-primeiro ministro e o major Melo Antunes”. Notoriamente enfraquecido, Vasco Gonçalves opta por abandonar a sessão. É então que são colocadas à votação as duas moções. A primeira, referente ao repúdio a Vasco Gonçalves como CEMGFA, será aprovada por 180 votos a favor, 47 contra e 38 abstenções. A segunda, sobre a reestruturação da Assembleia do MFA e a não comparência do Exército na mesma, caso não fosse reestruturada, obtém 176 votos a favor, 47 contra e 40 abstenções. A Assembleia de Delegados da Força Aérea, de 3 de Setembro, assumirá uma posição semelhante. Pelo contrário, a Assembleia da Armada, realizada no auditório da Escola Naval no Alfeite, manifesta o seu apoio às decisões do Presidente da República, nomeadamente a que dizia respeito à nomeação de Vasco Gonçalves como CEMGFA.
Apesar do boicote decretado pelo Exército e Força Aérea, o Presidente da República Costa Gomes decide não adiar a realização da Assembleia do MFA. Inicialmente prevista para as 10 h do dia 5 de Setembro, o encontro apenas tem início às 16 horas, devido à reunião extraordinária dos delegados do Exército nessa manhã. Presentes 60 delegados da Armada, o Chefe de Estado Maior do Exército Carlos Fabião, o Chefe de Estado Maior da Força Aérea Morais da Silva, o comandante do COPCON Otelo Saraiva de Carvalho, o comandante da Região Militar Norte Eurico Corvacho, o primeiro-ministro Vasco Gonçalves e outros delegados que assistiam a título individual.
Depois de um breve debate sobre a questão da descolonização, o grosso dos trabalhos incidirá sobre a situação político-militar e a reestruturação do Conselho da Revolução. A par da ratificação das decisões da Assembleia do Exército desse mesmo dia, determina-se uma profunda alteração na composição do Conselho da Revolução. O balanço final é claramente desfavorável ao sector “gonçalvista”: saem do CR Vasco Gonçalves e vários conselheiros que lhe são afectos (Eurico Corvacho, Pinto Soares, Ramiro Correia, Pereira Pinto, Costa Martins, Graça Cunha, Ferreira de Sousa, Ferreira Macedo e Miguel Judas). No total perdem nove conselheiros enquanto os “moderados” perdem apenas dois.
A ‘Assembleia de Tancos’ é, indiscutivelmente, um marco fundamental no processo revolucionário, ao permitir uma primeira clarificação da situação político-militar e, sobretudo, ao proporcionar uma inversão da correlação de forças existente no interior do Conselho da Revolução em favor dos subscritores do Documento dos Nove.
Aniceto Afonso
Carlos Matos Gomes
Maria Inácia Rezola