Se a definição programática e o decorrente processo de desagregação do MFA são uma das linhas de força do Verão Quente de 75, outra será, sem dúvida, a crescente pressão e agitação político-partidária. O confronto pelo poder em curso nas mais altas esferas militares reflete-se e é habilmente explorado pelos civis que, a par das ações empreendidas juntos dos centros de poder, utilizam as ruas como elemento de pressão. O que se joga nesses momentos é não só o papel do Conselho da Revolução na condução da vida política nacional mas o próprio destino da Revolução. Um combate decisivo para o qual há que congregar todos os esforços e que justifica o recurso a todas as estratégias.

Depois dos incidentes do 1.º de Maio e dos Casos República e Renascença, o PS convoca dois enormes comícios no Estádio das Antas no Porto e na Alameda D. Afonso Henriques em Lisboa (18 e 19 de Julho). No segundo destes comícios, Soares leva a multidão ao rubro quando pede ao Presidente da República a demissão do Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves. O grito “O Povo não está com o MFA” ecoa na Fonte Luminosa. É a consumação de uma rutura anunciada. De um lado, o PS em defesa das liberdades, do pluralismo e da democracia representativa de legitimação eleitoral, com o apoio do PPD, do CDS, do MRPP e da Igreja Católica. Do outro, o PCP e grupos esquerdistas, pugnando por uma revolução socialista escorada na legitimidade revolucionária, que encarava a social-democracia do PS como meio caminho andado para o regresso a curto prazo de uma ditadura reacionária.

Apesar da sua desvantagem eleitoral, o PCP manifesta uma inesperada confiança, patente na superioridade com que trata os seus rivais mais diretos. Acusando o PS de violar o Pacto MFA-Partidos e de fazer guerra “interna e externa às forças progressistas”, responsabiliza os socialistas por um eventual fracasso do processo revolucionário e, para já, da inviabilização da coligação governamental (rutura da coligação que suportava o IV GP). Confiando amplamente na sua influência no meio militar, nas autarquias, nos sindicatos e nos meios de comunicação social, o PCP sentia-se reforçado com a aprovação do Documento-Guia e a constituição do Directório.

No entanto, a 10 de Agosto, o Comité Central do PCP convoca, no seu Centro de Trabalho de Alhandra, uma reunião de emergência que parece anunciar uma nova estratégia. O encontro tem como único ponto de trabalho “o exame da crise política actual e as tarefas do Partido dele decorrentes” amplamente desenvolvido pelo Secretário-Geral do Partido, naquela que será a intervenção dominante do encontro. Caracterizando as múltiplas facetas dessa crise, uma crise que “atinge praticamente todos os aspectos e sectores da vida nacional”, da política à economia, do militar ao social, Álvaro Cunhal denuncia uma “grande ofensiva militar e política da direita” que, nesse momento, concentra “os seus esforços num objectivo: o afastamento de Vasco Gonçalves, vendo nesse objectivo como que a abertura numa barragem de areia”.

Na intervenção de Cunhal, destaca-se ainda uma ampla reflexão sobre a situação interna do MFA, nomeadamente sobre a constituição do Directório Costa Gomes – Vasco Gonçalves – Otelo Saraiva de Carvalho. Tendo em conta que “este Directório surge quando desaparece o Conselho da Revolução”, Cunhal conclui que “a constituição do Directório neste momento significa que o MFA está a decapitar-se, que não tem uma direcção homogénea, uma direcção revolucionária”.

Finalmente, um último elemento do discurso que é impossível descurar: a posição do PCP relativamente a Vasco Gonçalves. Contrariando todas as expectativas, Cunhal afirma que a formação do novo Governo, embora respondendo “a uma necessidade inadiável”, não pode “resolver todos os aspectos da crise. Fica de pé, tal como antes, o problema geral do poder político no seu conjunto”. Assim, se ao definir as tarefas políticas prioritárias a empreender, era feita uma referência à reorganização e saneamento do “aparelho de Estado (incluindo os sectores militares e militarizados, os tribunais, o aparelho diplomático, o funcionalismo)” e à “formação de um sistema de poder que garanta centralização das decisões de capital importância”, a concretização dessas tarefas passava, segundo esta nova estratégia, por um “reforço do poder” que Vasco Gonçalves parecia não poder garantir.

Seria este um sinal de que, mesmo os comunistas, estavam dispostos a deixar cair Vasco Gonçalves? Para já, uma única conclusão é possível: em Alhandra Álvaro Cunha deixa clara a sua descrença na viabilidade do novo executivo de Vasco Gonçalves. Dias depois, o apoio dado pelo PCP à constituição da Frente Unida Revolucionária (FUR) é mais um sinal desta estratégia.

 

Aniceto Afonso
Carlos Matos Gomes
Maria Inácia Rezola

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