A 7 de Agosto de 1975, véspera do dia previsto para a tomada de posse do V Governo Provisório, a 3.ª edição do Jornal Novo anuncia em manchete: “Documento Melo Antunes. O grupo não-radical propõe uma alternativa para a crise política”. A edição desaparece rapidamente das bancas. Por isso, no dia seguinte, o Jornal Novo volta a publicar o documento em primeira página, designando-o agora de “Documento dos Nove”.
Segundo Ernesto Melo Antunes, um dos principais responsáveis pela sua redacção, este documento era uma expressão de “revolta” contra “o caminho que as coisas estavam a tomar, isto é, o caminho de levar Portugal a tornar-se um país cada vez mais próximo do modelo soviético”. Rejeitando a ideia de que o seu objetivo era “impor um certo modelo de socialismo militar”, Melo Antunes esclarece que o grande princípio subjacente à iniciativa era “conseguir um entendimento à esquerda”, do qual o PCP não estava à partida excluído, desde que colocasse de lado os seus intentos hegemónicos, de forma a “conduzir o país na ordem democrática e na ordem económica e social”. Um projeto suficientemente amplo para congregar todos os que não se reviam nas propostas do Documento Guia de Aliança Povo–MFA e olhavam com crescente preocupação os rumos que a Revolução seguia.
Na sua essência, o Documento dos Nove sugere um caminho original que rejeita simultaneamente o modelo da Europa de Leste e da social-democracia de vários países da Europa Ocidental. Trata-se de um projecto político que aponta para a construção de uma sociedade socialista — «isto é, uma sociedade sem classes, onde tenha sido posto fim à exploração do homem pelo homem»—, alcançada de uma forma gradual — «aos ritmos adequados à realidade social portuguesa»— e através de democracia política.
Para alcançar este objectivo e superar a «crise gravíssima que o país atravessa», era indispensável que o MFA se afirmasse como movimento «suprapartidário» e desenvolvesse «uma prática política realmente isenta de toda e qualquer influência dos partidos». Só assim, concluem os autores do Documento dos Nove, se reuniriam as condições para que o MFA recuperasse “a sua credibilidade” e cumprisse “a sua vocação histórica de árbitro respeitado e motor do processo revolucionário”.
Subscrito, num primeiro momento, por nove conselheiros da revolução (Vasco Lourenço, Canto e Castro, Victor Crespo, Costa Neves, Melo Antunes, Victor Alves, Franco Charais, Pezarat Correia, Sousa e Castro) e depois por muitos outros oficiais e civis, o documento foi divulgado num momento em que, nas ruas, na Assembleia Constituinte e na comunicação social, muitos expressavam já a sua insatisfação. A espectacular e imediata adesão ao Documento excedeu grandemente as expectativas dos seus autores.
Em termos político-partidários, o apoio ao Documento Melo Antunes foi liderado pelo Partido Socialista. Apesar de, anos mais tarde, Mário Soares ter confessado a sua não identificação com as ideias propostas, o texto correspondia, em muitos aspectos, às críticas que o seu partido vinha manifestando. É esse, aliás, o sentido da “carta aberta” que, a 8 de Agosto, Mário Soares dirige a Costa Gomes, sob o insinuante título de “Repare Sr. Presidente”.
Por muitos considerado como uma ‘pedra no charco’, o Documento dos Nove teve efeitos imprevisíveis quer no campo militar quer no civil, acabando por constituir uma plataforma comum para todos os que, insatisfeitos com a crescente hegemonia do PCP e do gonçalvismo, preconizavam uma alteração no rumo tomado pelo processo revolucionário. Deixara de ser tabu dizer que existiam divisões no seio do MFA. Em pleno verão de 1975, a Revolução entrava num dos seus momentos mais quentes.
Aniceto Afonso
Carlos Matos Gomes
Maria Inácia Rezola