Em 25 de Abril de 1974, eram já muitos os que, dentro e fora da Igreja, a acusavam de ter pactuado com a ditadura e de ter actuado como uma força política ao seu serviço. Curiosamente, ao contrário do que, durante décadas, o regime propagandeara, a Igreja católica não só não será vítima de uma perseguição em larga escala, como desempenhará um papel importante na luta política que se travou no verão de 1975.

A pesada herança do seu enfeudamento à ditadura, cujas consequências eram imprevisíveis, explica a prudência da Igreja nos primeiros momentos da Revolução. Esta estratégia está, por exemplo, patente na determinação de encerrar o jornal Novidades (3 de Maio), na decisão de que fossem evitadas posições públicas individuais, e também no tom das mensagens do Episcopado.

A presença do Cardeal Patriarca de Lisboa na cerimónia de investidura do general Spínola transmite uma imagem de normalidade nas relações Igreja-Estado, que vem a ser reforçada, pouco depois, com a visita e apresentação de cumprimentos do recém-empossado ministro dos Negócios Estrangeiros – Mário Soares – a D. António Ribeiro e ao Núncio Apostólico. A “santa prudência” da hierarquia eclesiástica é partilhada pelo novo poder político. Conscientes do poder e força que a Igreja detinha, e sobretudo da sua enorme influência sobre largos sectores da população portuguesa, muitos acreditaram que o sucesso da Revolução dependia, em grande medida, do bom entendimento com esta instituição. Havia, além do mais, a memória do que fora “a questão religiosa” na I República, experiência que não queriam ver repetida. Este espírito de concórdia, que dominou a relações entre a Igreja e o Estado nos primeiros tempos depois do golpe do 25 de Abril, é fundamental na resolução daquela que, à partida, prometia ser uma questão complicada: a revisão da Concordata.

Esta imagem do bom entendimento das mais altas esferas de poder não pode, no entanto, esconder os problemas que se manifestam a outros níveis. Apesar de pontuais, verificam-se ataques a bens e propriedades da Igreja. E se casos como o do Seminário dos Olivais (Maio de 1974) e do Seminário do Funchal (Novembro de 1974) tiveram uma resolução pacífica, outros serão mais complexos. Basta observar o que se passou com o Seminário de Almada (cuja ocupação, em Novembro de 1974, durou apenas algumas horas graças à intervenção do COPCON) ou com o Externato de Proença–a–Nova (ocupado a 19 de Janeiro de 1975). Os exemplos podiam multiplicar-se. Alegando falta de instalações escolares, grupos de populares em que, regra geral, estavam envolvidos elementos de extrema-esquerda, procederam ao assalto de propriedades da Igreja. A prudência inicial que todos tinham manifestado começava progressivamente a ser abandonada. Na imprensa e nos meios de comunicação social, as criticas à Igreja subiram também de tom. Sentindo-se ameaçada, a Igreja altera também a sua posição.

Em inícios de 1975 surgiram os primeiros sinais indiciadores desta mudança de atitude: quebrando um longo silêncio relativamente a assuntos políticos, a Conferência Episcopal condenou a Lei da Unicidade Sindical e defendeu a liberdade e o pluralismo de associações de trabalhadores. Esta posição, partilhada por alguns partidos e forças políticas (como o PS ou o PPD), representa um primeiro passo da hierarquia eclesiástica na definição de uma posição contrária ao avanço do radicalismo político-ideológico.

O mal-estar que progressivamente se instala a partir de inícios de 1975 é consideravelmente agravado com o “caso Rádio Renascença”. Depois de meses de litígio entre Conselho de Administração e trabalhadores, e na sequência de uma nova ocupação dos estúdios de Lisboa e do centro emissor da Buraca, em fins de Maio a ruptura consuma-se: a Rádio Renascença abandona a designação de emissora católica e os padres retiram-se do serviço radiofónico. Um grupo de trabalhadores, apoiados em organizações partidárias e sindicais, passam a dirigir a estação. A “Rádio Renascença emissora católica portuguesa” era agora “Rádio Renascença ao serviço dos trabalhadores”.

Desde o primeiro momento, o caso foi apresentado pela Gerência como um conflito político-ideológico e por parte dos trabalhadores como um problema laboral. A opinião pública dividiu-se, tomando partido de um ou outro lado.

A 7 de Junho, numa conferência de imprensa no Patriarcado de Lisboa, os membros do Conselho de Gerência denunciam a passividade das autoridades e a sua incapacidade em tomarem “uma decisão que vá contrariar as organizações políticas”. Em seu entender, além de não constituir “um caso isolado no contexto sociopolítico e religioso do país”, o problema da Rádio Renascença representa “um atentado a uma Igreja verdadeiramente livre”. Consciente de que em jogo estava a sua autonomia, assumiu um tom de ameaça: numa situação limite este caso poderia provocar a “ruptura entre a Igreja e o Estado”.

O conflito agudizou-se de tal forma que, em Junho de 1975, a Conferência Episcopal não hesitou em afirmar que, apesar de achar louvável o programa democrático, económico e social preconizado pela Revolução de Abril, tinha sérias reservas quanto ao processo revolucionário “tal como ultimamente se vem desenvolvendo e a recear que se esteja a caminho dum totalitarismo indesejável”.

A tensão que este caso gerou tem uma das suas melhores expressões nos incidentes ocorridos no Patriarcado a 18 de Junho de 1975. Nesse dia, a UDP e o Sindicato dos Gráficos convocam uma manifestação frente ao Patriarcado de Lisboa de apoio aos trabalhadores que ocupavam os estúdios e emissores de Lisboa. Simultaneamente foi organizada, no mesmo local, uma contramanifestação em defesa das posições episcopais. O confronto entre os dois grupos foi violento e as forças militares chamadas a intervir revelaram-se hesitantes, senão mesmo impotentes.

Se já em Abril, em entrevista ao jornal Le Figaro, D. António Ribeiro fora peremptório em afirmar que o governo não controlava o país, agora é a conferência Episcopal quem denuncia a fraqueza do poder político “perante grupos minoritários que pretendem impor pela agitação e violência o que não conseguem pela razão e pelo direito”. As relações entre a Igreja e o Estado estavam “em corda bamba”. A agravar toda esta situação, o Conselho da Revolução entra em ruptura com a Igreja ao anular a decisão governamental, de 1 de Julho, de devolver a Rádio Renascença à Igreja. A crise estava instalada e de nada servem as sucessivas tentativas do então primeiro-ministro Vasco Gonçalves para solucionar o caso.

Os acontecimentos da Rádio Renascença fazem a Igreja abandonar definitivamente a sua isenção. São eles, sem dúvida, o grande motor das movimentações dos meios católicos nesses meses que se traduzirão, de Julho a Agosto de 1975, na criação de uma frente católica que se manifesta contra o poder político, atuando, algumas vezes, em estreita aliança com algumas forças e partidos políticos.

Num momento em que muitos partidos políticos saem à rua em luta contra o “gonçalvismo”, os católicos empenham-se na realização de enormes manifestações católicas que agitam sobretudo o Norte e Centro do País: Aveiro (13 de Julho), Viseu (20 de Julho), Bragança (27 de Julho), Coimbra (3 de Agosto), Lamego e Braga (10 de Agosto), Leiria e Vila Real (24 de Agosto).

Esta frente católica acabou por apoiar movimentos de extrema-direita, em especial a partir da diocese de Braga, na qual o cónego Melo desempenhou importante papel, partindo dali o movimento anticomunista que levou ao assalto a muitas sedes de partidos e grupos de esquerda do Norte e Centro do país durante o Verão de 1975.

 

Aniceto Afonso
Carlos Matos Gomes
Maria Inácia Rezola

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