Os actores da música e cultura populares entre 1961 e 1975: Manuel Rocha


Os instrumentos de transição da cultura popular na sociedade moderna, o modo como ela interage com a história e como os actores da canção popular se apropriam dela, tornam-na não só um veiculo veloz de transmissão cultural na sociedade como de integração de códigos, valores e simbolismos nela expressos, que de outro modo dificilmente chegariam a tanta gente. Determinados aspectos e significados, como elementos iconográficos, modos de trabalho, rezas, dizeres ou provérbios que enformam determinada cultura num determinado tempo e espaço estabelecem, tendo como canal as canções, uma ligação ao padrão de vida da comunidade, seja ele laboral, social, sentimental, político, religioso ou ideológico. A melodia e a palavra em si mesma permitem que os aspectos que enformam a vida das comunidades numa determinada fase se modelem dentro de critérios específicos, seleccionados pelos protagonistas da canção e que, dado a essa plasticidade, acompanhem quer o uso que é feito das canções como a apropriação colectiva e/ou disseminação da mensagem nelas contida naquele período. O modo como a música popular foi ganhando expressão no sistema e na sociedade portuguesas está indelevelmente marcado não só pela mudança do regime político em Abril de 1974 como pelas consequências que a reforma da democracia e o processo histórico que se seguiu provocaram em todos os sectores da vida em sociedade

Aquele período de cerca de oito meses e meio, em 1975, que ficou conhecido como Processo Revolucionário em Curso (PREC) é dos períodos mais conturbados politicamente, mas também dos mais interessantes do ponto de vista cultural e no que diz respeito à volubilidade do papel e condição dos músicos em Portugal e das canções que assinalaram o mesmo.

O surgimento de cooperativas e grupos de acção cultural neste contexto [3] intensifica o poder de contestação dos cidadãos [4]. A música que se reclamava de «comprometida com uma realidade social», engajada e actuante tem neste tempo o seu palco privilegiado

Escolhi três partes de conversas que mantive com os músicos, autores e compositores José Mário Branco, Luís Cilia e Manuel Rocha, por um lado por se tratarem, no caso dos dois primeiros, de protagonistas da canção popular que surgem no mesmo período com percursos distintos, como, no caso do terceiro, por se inserir num domínio etário e contexto socio-político que vem na esteira do anterior embora comungue na discussão das mesmas linhas temáticas em que a canção popular se inscreve, mas também pelo facto de nelas perfilarem, socorrendo-se das suas vivências e da sua memória não só descritiva como da interpretativa, na medida em que há nestes diálogos uma conjunta análise das suas memórias, as suas opções até hoje, fortemente influenciadas por aquilo que experienciaram nos campos socio-culturais em que se envolveram.

Manuel Rocha à conversa com Soraia Simões from ARQUIVO MURAL SONORO.

Manuel Rocha (MR): O contexto em que eu comecei a estudar música era um contexto completamente desinserido da prática musical. Era o contexto dos chamados conservatórios, que é um contexto cheio de laçarotes mas de nenhuma humanidade e portanto a música era música completamente despida de qualquer prazer, de qualquer gosto por aquilo que se estava a fazer. Eu acabei por gostar de música mais através da música popular, sendo que aprendi as técnicas da música mais ou menos no conservatório e depois passei para o convívio com a música popular, que era ''música saborosa'' e só mais tarde, depois de ir para a União Soviética estudar, é que eu comecei a perceber que as duas coisas eram a mesma coisa, porque na União Soviética existia um sistema de ensino muito ligado, por causa da sua influência marxista em termos de concepção, ou melhor professava a ideia de que a música é sempre um objecto de circulação. Não se pode pensar em Tchaikovsky sem pensar nas melodias populares, não se pode pensar em Bach, não se pode pensar em Bartók, não se pode pensar em nada fora das músicas populares. Se nós analisarmos a obra de Beethoven, se nós analisarmos a obra de Mozart, todas elas estão influenciadas por música popular. ''Música popular'' em que sentido? No sentido de que toda a cultura, toda a ''cultura do povo'', e muitas vezes do ''povo rural'' acaba por obter cristalizações e formas estéticas que são formas estéticas que aproveitam a quem vive no meio da gente e não há ninguém que não viva no meio da gente, pode viver esquecido da gente, mas no meio da gente anda de certeza.

Pensar nos sons despidos dos homens que lhes dão sentido é uma estupidez como outra qualquer, desde logo na concepção. Nós temos uma escala, que é uma escala cromática de doze meios tons que é uma criação da humanidade, isto não foi criado por nenhuma natureza. Nós temos um sistema modal que é criação da humanidade, se nós formos para o Vietname eles lá tinham outro sistema musical, tinham outro sistema modal. Nós temos um sistema modal, que no fundo é um produto da civilização que temos. Nós temos inclusivamente na música popular muitas formas que não respeitam aquilo que é a música ocidental. Por exemplo, o maior e o menor, o maior e o menor é definido por um terceiro grau, chamado «terceiro grau», que estabelece com o primeiro grau de uma escala uma terceira menor ou uma terceira maior, em muita da música de Trás-os-Montes esse terceiro grau não é definido, e não é definido de propósito, isto é oscilação que ele tem, que se nós dividissemos um tom e um meio tom, um tom tem dois meios tons e digamos que o meio tom é a medida mínima que nós temos em música dita assim cerebralmente, no entanto essa terceira de que eu estava a falar nunca é definida, nunca é definida de propósito porque há uma ambiguidade harmónica na música antiga, nessa música popular, que é um rasto de uma civilização a que nós fomos beber presentemente e pensar na música como algo que é uma aprendizagem técnica é despido daquilo que a música tem.

Soraia Simões (MS): Achas que a visão que tu comportas desses dois universos que não são dissociáveis é uma visão contra-corrente no seio do ensino no Conservatório?

MR: É, é uma visão contra-corrente. Repara que nós tivemos no século XX alguns grandes avanços. Nós já considerámos o jazz uma música menor, uma música popular dos negros da América, no entanto ele foi sacado para a vivência por homens lúcidos que eram grandes compositores. Stravinsky tinha uma grande admiração pelo jazz, o Tchaikovsky tem um «Jazz Suite», não é?, Ravel tem numa sonata de violino um blues. Se nós virmos bem há um toque dos dois universos que é permanente e de facto pensarmos nas coisas como a dissociação completa delas é uma tolice a um nível mais elevado de que nós estamos a falar, que é ao nível da concepção musical, que é ao nível da produção musical, que é ao nível da música que circula entre as pessoas, porque a música é uma coisa que  circula entre as pessoas, é evidente que há muita música que não circula entre as pessoas, circula nas periferias e muito cerebralmente, tem tendência a morrer como tudo o que não é necessário. A humanidade é extremamente cruel para com as coisas que não são necessárias.

MS: Se calhar sempre tiveste essa linha de entendimento a respeito da música.

MR: Sim

MS: Mas, foi isso por exemplo, reportando-nos lá atrás, que fez com que tu tivesses feito parte do Movimento Alfa em torno das campanhas de alfabetização?

MR: O Movimento Alfa foi importante, porque eu na altura, quando fiz parte do Movimento Alfa, tinha 14 anos. Estavamos no PREC, estavamos no final do PREC, em que Portugal foi assolado por um conjunto muito grande de sons, entre os quais os ''sons do povo'', e em Malpica do Tejo (Castelo Branco), foi onde estive no Movimento Alfa, ainda se cantava as canções da ceifa, as canções das colheitas, ainda havia alguma ligação à terra, na altura nós trabalhavamos para comer, numa cooperativa, a Cooperativa Camponês Livre, nas terras da família Garrett, na altura ocupadas e depois devolvidas pelos governos de direita que vieram a seguir, de direita que eram do PS por acaso mas eram os governos de direita (risos), de forma que esse contacto com a música popular e com a música de que as pessoas gostavam e que viviam de uma forma mais ou menos informal dá-me ideia que isso também me formou ao nível do gosto musical e sobretudo ao nível da atitude perante a música.

Vi um paradoxo durante alguns tempos feito por alguns grupos que eram os grupos da música popular, sobretudo aqueles movimentos que levaram a música popular a todo o lado, que era porem velhos tocadores, velhos porque eram homens velhos, a falarem para uma plateia sobre a sua imensa sabedoria, estupidez absoluta. Esses velhos tocadores não eram conferencistas, não têm nada para dizer a ninguém, eles expressam-se através da música e têm uma herança musical que não é necessariamente reflectida, é uma herança musical reflectida por eles mas não reflectida no sentido intelectual do termo, ela tem tudo a ver com a função, tem tudo a ver com o balanço que se dava para dançar por exemplo se eles eram músicos de baile, tem tudo a ver com a respiração dos instrumentos, mas isso é uma apreciação estética, é uma apreciação estética muito mais importante do que a explicação da coisa em si.

Uma vez em Trás-os-Montes num trabalho que eu fiz há uns anos, estavamos a falar sobre o ensino da gaita de foles, e um velho que não me lembro agora o nome dizia-me assim: ''ó amigo, a gaita de foles não se ensina aprende-se''. Isso tem muita graça, isto é uma grande lição, é dizer que só toca gaita de foles quem ouve os velhos e depois a transforma com o seu próprio gosto.

MS: Reportando-nos agora às recolhas etnográficas, às recolhas do Giacometti por exemplo, elas ganham, quanto a ti, um interesse diferente porque a academia as valoriza dessa forma?

MR: Mas, as recolhas do Giacometti, mesmo a interpretação do trabalho do Giacometti não é livre de discussão, há quem valorize o trabalho do Giacometti e há quem não valorize nada o trabalho do Giacometti. Espero não estar a cometer nenhum sacrilégio, mas a academia desvaloriza muito o método de campo do Giacometti, eu considero que o Giacometti teve relativamente à academia uma grande importância, ele era orelhas, não era necessariamente interpretação, ele não interpretava, 'orelhava', e levava, e transmitia, mostrava e estudava às vezes com o Lopes-Graça, mas aquilo que ele fazia não era de facto isso, o que ele fazia era ir buscar, munindo-se de uma qualidade humana muito grande e de uma intenção, que era uma intenção política de alguma forma, que era uma intenção de valorizar a 'música do povo', numa altura em que a 'música do povo' estava a desaparecer. Portanto, desinserir essa música do seu meio, que é o meio da sua produção e da sua existência, é um excercício que dá para doutoramentos mas não dá realmente para mais nada, porque aquilo que fazem os grupos da música popular, como a Brigada Victor Jara e mesmo o GAC, etc é provavelmente muito mais importante do que o trabalho académico.

MS: Era isso que eu também te ia perguntar, é que se calhar isto já aconteceu de alguma forma, a valorização e discussão dessas recolhas ao longo da história com os grupos musicais, com os intérpretes.

MR: Sim, mas hás-de ver que me mesmo assim (hoje já não é esse o caminho em que estamos), no início aquilo que se pretendia era vestir de novas roupagens a música popular para lhe dar uma ideia boa para a sociedade em geral, era uma ideia paternalista. Era vesti-la de urbanidade...

MS: Mas, a Brigada (Brigada Victor Jara) [18]  fez isso no início de certa forma?

MR: A Brigada de alguma forma no início fez isso. Aliás, a Brigada tinha consciência disso. No primeiro texto que é o texto do «Eito Fora» quem o escreveu foi o Seabra [19]. Ele diz que tirar a música do seu meio próprio despe-a daquilo que é a sua essência, portanto para a trazer para o palco é necessário trazê-la de uma outra forma, da forma em que ela saiba ser lida por quem a toca, e foi isso que a Brigada fez, mas há música que não resiste a isso, as cantigas do bombo ali da Beira Baixa não resistem a isso por exemplo, não resistem nem se deixam amordaçar por isso. Nós podemos amordaçar uma música de embalar numa grande roupagem musical, mas onde ela subsiste importante é na sua função, que é de embalar os meninos, retira-la de embalar os meninos já é outra coisa.

MS: Ou como uma cantiga de trabalho.

MR: É outro objecto, é apenas transformar o objecto, mas como te digo a Brigada não terá tido nunca uma visão paternalista, mas essa visão paternalista existiu, de que a ''música do povo'' é uma música bárbara e portanto vamos meter-lhe um laçarote para que ela fique boazinha, não é? Do mesmo modo, dá-me a ideia de que o meio académico vai para o campo com o paternalismo tentar explicar.

MS: À procura de uma «autenticidade» qualquer.

MR: Exacto. À procura de uma autenticidade qualquer que depois não consegue perceber, porque depois vai para o campo e chega ao campo e apercebe-se que as pessoas lá não gostam das músicas, gostam é da «música pimba» e depois há aqui uma inquietação, que é a inquietação que nós devíamos de facto ver.

MS: Tu com a Brigada Victor Jara sempre tiveram muitos concertos pelo arquipélago dos Açores e mantem-se essa relação, a tua actividade como sindicalista e a tua actividade política também tem sido uma constante e não se dissocia da tua actividade no campo musical...

MR: Sem dúvida que não, porque é um facto que as ideias que eu perfilho que são as ideias de fraternidade, ideias da valorização do povo e dos trabalhadores e dos seus contextos culturais e dos seus contextos funcionais são indissociáveis (pausa). Não é por acaso que a cultura popular sempre foi de esquerda, de esquerda assumida como lado humanista da nossa sociedade avesso às elites que não sejam as elites do pensamento.

MS: Não activista, humanista?

MR: Activista mas humanista, porque nós acabamos por herdar também um legado, que é o legado da revolução francesa e que antes disso dir-se-ia do comunismo primitivo, em que os homens funcionavam com regras de compensação mútua. O gordo podia levar às costas o magro que subia à árvore para ir buscar a maçã, nunca o contrário.

Referências bibliográficas

[[18] A Brigada Victor Jara foi criada no ano de 1975 por um grupo de jovens de Coimbra. Passou por várias formações até hoje. No início do seu percurso os seus integrantes reproduziam canções portuguesas e estrangeiras de pendor revolucionário com que participavam nas campanhas de dinamização cultural do MFA. Assim designados em memória do cantor chileno com o mesmo nome, morto pelos militares após o golpe de Pinochet, no Chile. 

[19] No ano de 1977 o grupo Brigada Victor Jara edita o fonograma Eito Fora - Cantares Regionais registando uma nova fase inspirada na música de cariz regional no contexto da música e cultura populares de matriz urbana. Deste agrupamento faziam parte Né Ladeiras, Jorge Seabra, José Maria Vaz de Almeida, Fernando Amilcar, Jorge Santos, João Ferreira e Joaquim Caixeiro.

Manuel Rocha, 59ª Recolha de Entrevista Quota MS_00015 Europeana Sounds
no-re-use, free access