Os actores da música e cultura populares entre 1961 e 1975: Manuel Rocha (II)

Nesta segunda parte da série "Os Sons da Revolução: os actores da música e cultura populares entre 1961 e 1975", expõe-se alguns dos pontos de vista de Ruben de Carvalho [20] e Manuel Rocha [21] registados numa sessão de debate que o Mural Sonoro organizou e conduziu no Museu da Música com o tema: «Música e Política» a 31 de Maio de 2014, assim como procura, através das entrevistas realizadas e do convívio com estes agentes (intérpretes, autores e compositores), apresentar alguma da sua  abordagem aos acontecimentos não só políticos como culturais e da indústria considerados relevantes – das suas práticas, dos repertórios musicais – tendo em conta as noções temporo-espaciais que os acompanha.

"Música e Política" Primeira Parte from ARQUIVO MURAL SONORO.
 

Soraia Simões (MS) a Manuel Rocha (MR): De que forma é que os discursos contidos em alguns domínios musicais em pleno PREC, em 1975 quando andaste pelo Movimento Alfa, se organizavam à luz dos valores que enformavam as suas práticas?

MR: Eu não estive na génese da coisa, isto é eu vi acontecer a génese da coisa. Aos doze anos dá-se o 25 de Abril. Caiu-me no colo. E é uma sorte poder cair uma revolução no colo de um adolescente. Estou muito feliz por isso me ter acontecido a mim. Não fiz nada por isso, mas alguém fez por isso e portanto eu fui beneficiário directo dessa circunstância. Mas, o que é verdade é que desde logo eu me apercebi de que havia várias formas de cantar, várias formas de ser música, várias formas de ser canção. Lembro-me distintamente, que os meus pais eram da oposição democrática, eram do MDP/CDE da altura, lembro-me das eleições de 1973, das de 1969 até aí chega a minha memória, depois mais para trás não. Mas, lembro-me de que havia gente que cantava coisas ''boas'' e gente que cantava coisas ''más'', ou seja quem é que cantava coisas ''más''? Os cantores do «nacional-cançonetismo», lembro-me desde o Artur Garcia, do Calvário daqueles, enfim, que eram uma nata de um ruído que nós identificávamos com a palavra amor. Era sempre amor, amor, amor (em miúdo, estou a falar de mim em miúdo) e nós identificávamos como um discurso que não era o discurso importante, não era o discurso interessante e eu lembro-me de estar no início dos anos 70 em casa do Vital Moreira que deus tem a ouvir a música do José Afonso e lembro-me dessa música do José Afonso como uma música de facto emergente e uma música que dizia outras coisas que não eram aquelas coisas que se diziam. Portanto, a minha memória das canções está no José Afonso, está no  Adriano Correia de Oliveira e está no Luís Cilia. A minha mãe era dona de casa e cantava uma canção no tanque que era «tiraste-me direito à vida, mas eu vivo/ mandaste-me prender mas eu sou livre, quem não pode morrer não pode ser cativo» (trauteia), mais tarde, muitos anos depois, porque não havia em minha casa discos nessa altura, numa conversa com o Manuel Freire chego à conclusão que esta canção, de que eu não conhecia o registo, era uma canção do Luís Cilia num poema algo amputado, arranjado digamos assim, do Manuel Alegre. Estas são as memórias que eu tenho da canção. Mais tarde até aconteceu uma coisa engraçada é que os meus filhos adormeciam com esta canção, eu tocava na guitarra e cantava esta canção, ficavam pacificados numa canção de luta, o que não deixa de ter uma certa graça, alguma consciência política lhes há-de ter deixado.  A primeira impressão, a impressão que eu tenho em jovem não é a impressão do músico, eu não actuo como músico.

Lembro-me que mais tarde aparece em Coimbra um grupo, fantástico na minha opinião, que se chamava Brigada Victor Jara, do qual faziam parte alguns amigos meus mais velhos como é evidente e que cantavam uma canção que não era uma canção revolucionária, e isto tem a ver com o album «Eito Fora», e que eu fui ver uma vez ao INATEL de Coimbra. Houve ali qualquer coisa de esquisito naquela música, sendo música popular não era música popular na acepção folclórica que nós conhecíamos dos programas do Pedro Homem de Mello, e que à partida mais tarde eu encontro-lhes encanto mas na altura achava aquilo foleiro --- eu e toda a minha geração, não é? ---, não tinha ainda a capacidade de distinguir o trigo do joio, havia um ruído que não me dizia nada, e aquele ruído novo, o ruído da Brigada Victor Jara, de alguma forma colocou na minha mão de jovem um novo paradigma, o paradigma da música popular que também é revolucionária. Tinha um primo, que era o Fininho como lhe chamavam, que era do GAC, também conhecia por parte do GAC essa música. Essas músicas do GAC e da Brigada Victor Jara estabeleceram na minha cabeça uma outra forma de ser música revolucionária, mas isto é meia mentira porque a verdade é que a música assume no movimento popular, tal como eu o entendi, a percepção que eu tenho era a de que o músico também tinha uma tarefa política, também tinha uma tarefa partidária. A percepção que eu tenho é a de que o músico tem uma tarefa. Uma tarefa também política, uma tarefa partidária algumas vezes, de outras vezes uma tarefa política mais ampla em que a música de facto acrescenta aos lugares onde ela acontece um sinal de identidade, é aí que a música não estará na posse da sua faculdade exteriormente política mas sim intrinsecamente política. O campo da música tradicional em que eu militei e milito é um espaço também de luta política. De luta política no plano da tomada do poder. De facto, canta-se para tomar o poder, aquela música quer tomar o poder, quer ser governo, como hoje se diz.

MS: Mas, Manuel, então os valores que enformavam essas práticas, como eu te perguntava no início, são políticos.

MR: São políticos sem dúvida.

MS: Ainda que não fossem partidários, não é?

MR: Ainda que não fossem partidários, mas (pausa). Eu de facto apareço na música, ou a música aparece na minha vida, como uma ferramenta de acção política. Mas, ela é um bocadinho mais do que isso, isto é  se eu fosse com a Brigada Victor Jara, sem aquele nome claro porque o nome em si já tem uma conotação revolucionária, mas se fosse com aquela música tocar numa festa de beneficiência ela não ficaria lá mal, cantar «eito fora, eito fora, eito fora» não tinha problema, já teria problema dizer «tiraste-me direito à vida mas eu vivo mandaste-me prender mas eu sou livre». Esta música já tem de facto no seu próprio corpo qualquer coisa que é de afronta. De afronta num plano político, num plano das opiniões, num plano das opções.

 

Mandaste-me prender, mas eu sou livre [22] 

Que não pode morrer, não pode ser cativo

Quem pela Pátria morre, e só por ela vive.

Vi os campos florir mas não ouvi

Raparigas cantando em nossas eiras

Nossos frutos eu vi levar e vi

Na minha Pátria as garras estrangeiras

Vi os velhos e os meninos assentados

nos degraus da tristeza vi meu povo cismando

vi os campos desertos, vi partir soldados

sobre o meu povo negros corvos vi pairando

E tu que do pais fizeste a triste cela

Tu que te fechas em teu próprio cativeiro

Tu saberás que a Pátria não se vende

E em cada peito em cada olhar se acende

Este fogo este vento de lutar por Ela.

Tu saberás que o vento não se prende.

E não terás nas tuas mãos de carcereiro

O sol que mora nas canções que nós cantamos

Nem estas uvas penduradas nas palavras

Tu que servis as pretendeste ou escravas

Em silêncios de morte e de convento

Tu ouvirás na língua que traíste

Palavras como o fogo como o vento

Estas palavras com que Portugal resiste

Portugal Resiste (Luís Cilia/Manuel Alegre)

 

MR: Parece-me a mim que o 25 de Abril estabeleceu regras no acesso, sobretudo no acesso às pessoas, mas nem por isso houve uma retoma, uma nova época ou um novo tempo naquilo que é a importância da canção, e a importância da canção no contexto social.


Referências bibliográficas

[20]  É Jornalista desde 1963. Autor de diversas publicações no domínio do fado, bem como noutros universos da Música Popular, de programas de rádio (‘Crónicas da Idade Mídia, em exemplo, continua a fazer parte da grelha de programação da Antena 1 da RTP) e diversos artigos neste âmbito em Jornais e Revistas. Foi chefe de redacção de ‘’Vida Mundial’’, redactor coordenador no ‘’O Século’’ e chefe de redacção do semanário ‘’Avante!’’ a partir do primeiro número da série legal, director da rádio local ‘’Telefonia de Lisboa’’, membro do Conselho de Opinião da RTP em 2002, responsável pelo ‘’Avante!’’ (órgão central do PCP) de Abril de 1974 a Junho de 1995. A sua actividade política encontra-se em várias etapas do seu percurso profissional com a cultural, tal como se pode apreender na discussão de alguns dos assuntos levantados na recolha de entrevista realizada para o Arquivo Mural Sonoro (encontra-se no acervo online com a Quota MS_00047 Europeana Sounds). Foi membro do executivo da CDE de Lisboa, membro executivo da Comissão Executiva das Festas de Lisboa e da Comissão Municipal de Preparação de LISBOA 94 – Capital Europeia da Cultura (ano em que Amália Rodrigues dá o seu último espectáculo, no Coliseu em Lisboa, sob a programação de Ruben de Carvalho. Tal como refere Joel Pina em entrevista para este Arquivo), deputado à Assembleia da República eleito pelo distrito de Setúbal, Vereador da Câmara Municipal de Lisboa desde as autárquicas de 2005, membro do Executivo da Comissão Organizadora da Festa do «Avante!» desde 1976 e, entre um numeroso conjunto de dinamizações na música e cultura populares, um dos principais responsáveis pela actuação no ano de 1983 do músico, activista e compositor americano Pete Seeger no Pavilhão dos Desportos em Lisboa, que ficaria registado em fonograma acompanhado de um livro e folheto de fotografias. Além de membro do Comité Central do Partido Comunista Português, foi também Vereador da Câmara Municipal de Lisboa desde as autárquicas de 2005 e responsável na Câmara Municipal de Lisboa  pelo Roteiro do Anti-fascismo. Entre a variada bibliografia do fado contam-se trabalhos da autoria de Ruben de Carvalho, como são os casos de “As Músicas  do Fado” (Campo das Letras, 1994), “Histórias do Fado” (Ediclube, 1999) ou “Um Século de Fado” do mesmo ano e editora.

[21]  Nasceu na cidade de Coimbra no ano de 1962, onde acabou por frequentar aulas de violino, instrumento cuja aprendizagem aprofundaria posteriormente - em 1982 - quando se fixa por seis anos em Moscovo para a sua formação em Professor de Violino e Músico de Orquestra. É integrante, e uma das forças motrizes, do grupo Brigada Victor Jara e do GEFAC e foi um participante activo no Movimento Alfa em torno das Campanhas de Alfabetização no ano de 1975. Quando regressou da URSS passou a dar aulas de violino no Conservatório de Música de Coimbra, no qual é hoje Director. Manuel Rocha trabalhou ainda como músico e compositor em bandas sonoras para teatro, cinema e televisão, foi Autor de um Documentário no âmbito etnográfico seriado para a RTP e colaborou em gravações com intérpretes como, entre outros, Adriano Correia de Oliveira, Mísia e Carlos do Carmo ou autores distintos como Fausto ou Manuel Freire. Manuel Rocha mantém o exercício crítico e atento sobre as questões que nortearam o registo da conversa mantida para o arquivo Mural Sonoro (encontra-se no acervo do Portal online com a Quota MS_00015 Europeana Sounds) e assume, ao longo da mesma, a actividade cívico, sindical e política como uma parte imprescindível no seu percurso musical, quer como músico e autor, quer como formador.

[22]  Canção de Luis Cília de combate no exílio. O poema é de Manuel Alegre. Foi editada duas vezes em 1965 e em 1971.

no-re-use, free access