O programa do MFA determinava a “convocação, no prazo de doze meses, de uma Assembleia Nacional Constituinte, eleita por sufrágio universal, directo e secreto, segundo Lei Eleitoral a elaborar pelo futuro Governo Provisório”. Integrando um conjunto de diplomas como a lei dos partidos políticos, a lei do recenseamento, a lei das capacidades cívicas e a lei que determina a organização do processo eleitoral, a lei eleitoral foi publicada em meados de Novembro de 1974. A 9 de Novembro iniciou-se o recenseamento dos eleitores que passaram do milhão e meio para mais de seis milhões. O processo apenas foi possível graças ao empenho e competência do então ministro da Administração Interna, tenente-coronel Costa Brás, e da equipa que constituiu no Secretariado Técnico dos Assuntos Políticos. Refira-se, aliás, que o STAPE desempenhou um papel crucial em todo o processo, acompanhando o trabalho da comissão de redacção da lei eleitoral e a elaboração dos novos cadernos eleitorais, assegurando a logística do recenseamento e garantindo a transparência e democraticidade das eleições propriamente ditas graças ao seu envolvimento no transporte dos boletins de voto e no apuramento dos resultados eleitorais.

O processo de organização e convocação do acto eleitoral não esteve isento de polémicas, que, em grande medida, contribuíram para o seu sucessivo adiamento.

O anúncio da realização de eleições a 25 de Abril de 1975 não só não terminou com o longo debate em torno da sua pertinência e mesmo do seu valor como, pelo contrário, o reavivou e enriqueceu com novos contributos e ideias. Apesar da questão ser explorada e aproveitada por alguns partidos, como o MRPP, que advogaram o boicote activo às eleições, rapidamente se constituíram dois grupos opostos. De um lado os que, aconselhando “o voto em branco a todos os que não saibam em quem votar”, acabaram por desvalorizar o peso e importância das eleições. Integram este grupo uma parte importante da 5.ª Divisão, vários elementos do Conselho da Revolução afectos à linha gonçalvista, o MES e o PCP, entre outros. Do outro lado, PS, PPD, CDS e os restantes partidos, para quem a realização do acto eleitoral era um passo importantíssimo para o processo de democratização.

O período de campanha eleitoral iniciou-se oficialmente a 2 de Abril de 1975. Segundo a imprensa desse dia, assistiu-se de imediato a uma “acesa guerra de cartazes em todo o país, empenhando dezenas de milhares de militantes, na sua maioria jovens, e consideráveis meios de apoio. Em Lisboa, o despique iniciou-se logo depois de jantar, prolongando-se até meio da madrugada”. Nesse mesmo dia, à tarde, PS e PCP usaram “dos primeiros cinco minutos de emissão que lhes haviam sido atribuídos na RTP, enquanto a Emissora Nacional, os seus emissores regionais e várias estações comerciais de Rádio proporcionavam outros tempos de antena às diversas formações políticas concorrentes”.

Do total de doze candidaturas apresentadas, apenas três eram de direita: CDS, PPD e PPM. O seu isolamento, num espectro que englobava socialista, comunistas, maoístas e troskistas, fez com que só o CDS se apresentasse como o partido não socialista.

Contando com uma amplíssima participação (votaram 91% dos eleitores inscritos), as eleições acabaram por se saldar numa importante vitória para o PS e mesmo para o PPD, assim como numa óbvia derrota não só do PCP e MDP/CDE, como também dos defensores do voto em branco.

As sucessivas declarações de altos dirigentes do MFA durante a campanha eleitoral e, sobretudo, depois da assinatura do Pacto MFA-Partidos, tinham deixado clara a ideia de que as eleições apenas serviam para eleger a Assembleia Constituinte, não tendo, por isso, qualquer resultado prático em termos de estrutura de poder. A celebração da Plataforma de Acordo Constitucional entre o MFA e os partidos políticos dava ao Conselho da Revolução as garantias necessárias de que a Assembleia Constituinte não ultrapassaria os princípios consignados no Programa do Movimento e respeitaria as conquistas revolucionárias já alcançadas. No entanto, realizadas as eleições para a Assembleia Constituinte, as posições assumidas por alguns líderes partidários, assim como as movimentações de rua que marcaram o mês de Maio de 1975, geraram um clima de inquietação, senão mesmo de suspeição, levando alguns a questionar a abertura da Constituinte. Os preparativos estavam, no entanto, já em curso, sendo a Assembleia solenemente inaugurada a 2 de Junho.

Apesar do interesse do discurso então proferido pelo presidente interino da Assembleia, Henrique de Barros, salientado o “amplo significado democrático e nacional” da sua entrada em funcionamento, foi o discurso do Presidente da República que marcou verdadeiramente a sessão.

Assinalando o alto significado de que se revestia a Constituição para o país, o seu pedido aos deputados foi para que minimizassem os seus interesses partidários e permitissem que o futuro texto constitucional venha a incluir “conceitos tão sólidos que garantam a estabilidade governamental do período transitório que pautará, mas que tais conceitos sejam tão amplos que não limitem o progressismo revolucionário do Povo e das suas Forças Armadas”. Tecendo considerações sobre a dinâmica do processo revolucionário e a forma como a Constituição sobre ela pode actuar, Costa Gomes não esqueceu a importância do “Pacto MFA-Partidos”, que, sendo um “elemento original” a ter em conta na preparação do futuro texto constitucional, possuía uma ampla justificação. Em primeiro lugar, ao constituir uma garantia de que ao redigir a Constituição não se corria o “risco de fazer retrogradar decénios o impulso socializante em que avança a nossa sociedade”. Depois, porque representava também a garantia de que a “nossa revolução progrida para um socialismo pluripartidário, em simbiose fecunda entre as vias revolucionária e eleitoral”. Assumindo o tom conciliatório que marcou muitos momentos do seu complexo mandato presidencial, Costa Gomes tentava a harmonização do impossível.

Este discurso presidencial assumiu particular relevância porque pronunciado num momento em que o MFA procurava clarificar os moldes em que se deveria instituir esse “socialismo pluripartidário” que Costa Gomes referiu e, nas ruas, as duas “vias”, revolucionária e eleitoral, já se digladiavam. A Assembleia Constituinte rapidamente se transformou na arena por onde desfilam as teses, preocupações, projetos e estratégias dos diferentes protagonistas da luta política em curso.

Os trabalhos da Assembleia começaram lentamente e em ambiente extremamente tenso. Um dos primeiros confrontos ocorreu a propósito das competências e atribuições da Constituinte. Enquanto para uns a Assembleia se deveria cingir exclusivamente à elaboração do novo texto constitucional, negando-se, por isso, a existência do período antes da ordem do dia, para outros a preparação da Constituição era entendida num sentido mais lato, implicando a existência de um vasto espaço de debate.

A tensão entre estas duas perspectivas vai manter-se ao longo de todos os trabalhos da Assembleia Constituinte que, inaugurados a 2 de Junho de 1975 apenas se encerram a 2 de Abril de 1976. Por diversas vezes, a Assembleia vai ser acusada de desvirtuar as suas funções, com denúncias que alertam para o facto de se demorar nas críticas ao Governo, ataques partidários e lutas de poder.

De facto, em diversos momentos, a Assembleia acabou por suplantar a sua missão específica, envolvendo-se em longas análises e debates sobre os problemas candentes do processo revolucionário em curso. Logo no seu primeiro mês de actividade, por exemplo, temas quentes da actualidade nacional, como os ‘casos’ Renascença e República, ou a aprovação do Plano de Acção Política do MFA, foram amplamente debatidos. Enquanto os trabalhos da Assembleia Constituinte progrediam a um ritmo nem sempre tão rápido como alguns desejavam, nas ruas a Revolução acelerou o passo.

A história da Constituinte ficará ainda marcada pelo dramático episódio do seu cerco, por trabalhadores da construção civil, a 12 de Novembro de 1975. Durante 36 horas os deputados constituintes foram impedidos de deixar São Bento. A sua saída, ao fim da manhã do dia 13, por entre alas de manifestantes, foi captada pelas câmaras da televisão: enquanto uns são apupados, outros (sobretudos os deputados de partidos à esquerda do PS) são vitoriados respondendo aos manifestantes com punhos erguidos.

A 2 de Abril de 1976 a Constituição foi finalmente aprovada com os votos favoráveis do PS, PPD, PCP, MDP/CDE, deputados independentes, UDP e do deputado de Macau (ADIM). Apenas os 15 deputados centristas votaram contra.

Aniceto Afonso
Carlos Matos Gomes
Maria Inácia Rezola

ver mais...